quinta-feira, 28 de julho de 2011

Ecologia da música: O som, a forma e as relações.

Ouça! Consegue ouvir?
A música?
Eu consigo ouví-la em qualquer lugar…
No vento… No ar… Na luz… Está ao nosso redor…
A gente precisa se abrir… A gente só… Precisa ouvir."


Evan acredita que a música poderia levá-lo de alguma forma até os seus pais desconhecidos. Ele possui o dom de perceber os sons ao seu redor de uma forma mais integrada que as demais pessoas. Em tudo ele percebe música, seja no balançar das árvores, numa bola quicando, no vento passando, numa buzina, linhas eléctricas etc, de tal forma que considera esse arranjo sonoro musical  como mensagens. Estas mensagens poderiam guiá-lo e quando ele descobre seu potencial de compor e tocar música ele pensa em expô-la e assim seus pais ouviriam também e o encontrariam. Essa a síntese da história do filme "August Rush", aqui no Brasil conhecido como "O Som do Coração". A história de certa forma traduz em parte o modo como músicos e a música se conectam, mas também diz que as pessoas estão conectadas umas as outras e um mundo onde tudo está conectado e preenchido pelos sons e pela música de uma forma geral. O som do coração, diz aquilo que muitos corações querem no final das contas que é se comunicar com o que o cerca e se relacionar, se interconectar. No filme, a música é o grande elo e a chave para Evan se comunicar com esse mundo e especialmente com seus pais. Isso é ecologia!

Há tempos tenho pensado em algo que una ecologia com a música, pois intuitivamente sempre imaginei uma aproximação, uma conexão natural. Não me refiro a alguém que escreve sobre ecologia nas letras de suas canções. É algo mais profundo que isso, que perpassa teorias e de alguma forma se liga coerentemente. Pensei então num termo ou conceito sobre isso e que acabei chamando de "Ecologia da Música". E constantemente esse termo não me saía da cabeça, pois eu sempre buscava pensar sobre isso e aos poucos fui tendo vislumbres que me fizeram chegar aonde eu queria alcançar.

 Pensando no fato da ecologia ser uma ciência que estuda ligações (conexões entre seres vivos e seu ambiente e entre seres e seres), podemos dizer que a busca por comunicação está dentro dos estudos de como um ser vivo se relaciona em um determinado meio, assim sendo a ecologia é pura comunicação. A Teoria Geral dos sistemas(TGS) provou isso e traduziu comunicação como qualquer coisa que faça   conexão com outro ser. Como digo sempre para as pessoas, a ecologia é a ciência das relações, e em toda relação há um aporte de mensagens. Por exemplo, uma folha que cai no solo é considerada uma informação. Essa matéria vai se decompor e enriquecer o solo que passará a ter mais informação (uma gama maior de nutrientes para serem absorvidos por outra planta). No caso da música ela é a conexão ou mais especificamente a combinação de sons, e ela nos comunica a muitas coisas: pensamentos, situações, lugares, coisas, sentimentos e mundos (tempos: passados, futuro desejado, presente) etc. Pessoas são comunicadas a pessoas, que chegam a de alguma forma se identificar e criar afinidade. Aliás, o termo afinidade é bem próximo de afinação.
Uma das coisas interessantes que descobri e que me conduziu nessa conexão foi entender que alguns povos nativos possuem na música algo fundamental para construção de sua coletividade sobretudo em se tratando de como se organizam e a processos sociais. Por exemplo, os Suyá, povo indígena do Alto Xingú, tem na música um meio de se relacionar,  podem restaurar e criar ordem em seu mundo com suas experiências de vida. Wisnik enuncia algo fantástico que apesar de se referir a música eu consegui visualizar o mesmo enunciado para a ecologia enquanto ciência que ela é. Dizia assim:

"Cantar em conjunto, achar os intervalos musicais que falem como linguagem, afinar as vozes significa entrar em acordo profundo e não visível sobre a intimidade da matéria, produzindo ritualmente, contra todo o ruído do mundo, um som constante (um único som musical afinado diminui o grau de incerteza no universo, porque insemina nele um princípio de ordem)".

Ora, o que ele simplesmente descreveu foi ecologia, porém na linguagem musical. Ao tentar descrever música ele acabou talvez sem saber descrevendo também a ecologia. Dessa descrição podemos fazer analogias, por exemplo entre o cantar em conjunto e o viver em conjunto, intervalos musicais com nichos e espaços de vida, afinar as vozes em analogia a evolução(transformação) de espécies, ou quando ele fala de um único som musical afinado diminui o grau de incerteza no universo, porque insemina nele um princípio de ordem, temos analogia com o processo de desordem a sucessão ecológica e sistemas que caminham a ordem e equilíbrio dinâmico, o qual forma um ecossistema. Podemos assim dizer substituindo algumas expressões musicais por expressões ecológicas a seguinte verdade que coincide com o que Winsk disse. Depois comparem com a afirmação original  de Winsk:

"Viver em conjunto, achar os nichos e espaços de vida que possam se interconctar-seres-ambiente-e seres-e-seres, refinar a (co)evoulção, ou melhor, a (co)transformação significa entrar em acordo profundo e não visível sobre a intimidade da matéria, produzindo ritualmente, contra todo distúrbio, uma relação constante (uma única relação ecológica diminui o grau de incerteza no universo, porque insemina nele um princípio de ordem, pois que pela entropia a desordem antecede a ordem, em uma sucessão ecológica e sistemas que caminham gerando complexidade e a ordem e equilíbrio dinâmico, o qual forma um ecossistema)."

O som é impalpável e invisível tanto quanto as interelações/conexões entre um ser vivo a outro, objeto de estudo da ecologia.

Para Wisnik, a música constitui-se no "jogo entre som e ruído". O ser humano ao codificar e estabelecer um elo de ligação entre esses ruidos e frequências irregulares e caóticas ordenando-as é capaz de criar algo "nítido" e plenamente sentido. Esse ato de criar é tão incrível que relaciona-se lindamente com o fato de que tal como Deus cria o planeta e o universo em Gêneses através do Verbo, que emana voz e consequentemente som/música, e tudo vai sendo criado, nós enquanto imagem e semelhança de Deus podemos dizer que temos na música o fato de que somos agentes criativos do Deus criador.
Podemos também dizer que quando corta-se uma árvore ou mata-se um bicho, não se está simplesmente movendo partículas de matéria e energia de um lado a outro, mas também vibração, ou simplesmente movendo música, de forma que volta a ser "ruído".
Vale dizer também que em povos tradicionais como índios e aborígenes e povos africanos, a música é marcada pela circularidade, ou seja, é marcada pela repetição. São ciclos musicais. Assim é também o funcionamento dos sistemas vivos. A reciclagem de resíduos, por exemplo, é um princípio da manutenção da vida. Quando a folha cai na terra transforma-se em matéria inorgânica, que entrará novamente na composição de um ser vivo. Nesse caso "Sons entre o concerto e o desconcerto do mundo".

Um dos momentos mais interessantes do filme "O Som do Coração" é quando Evan começa a perceber e conduzir o violão tirando música através de batidas ou "Taps" (termo dessa técnica musical). 

Esse mesmo é também um fenômeno físico  conhecido por batimento sonoro. Que é simplesmente nada mais que a superposição de dois sons harmônicos de freqüências ligeiramente diferentes. Pode ser feito obtido de duas cordas de guitarra de freqüências parecidas, por exemplo. Podemos encontrar esse fenômeno musical na ecologia onde na relação entre espécies o batimento sonoro é importante a medida que comunica um ser vivo a outro, se acha um ser e como esse ser chega a um lugar. 
 
Por exemplo, o tubarão usa esse "dom" para encontrar presas, insetos como a cigarra que transforma seu abdômen numa caixa de ressonância usam para atrair parceiros, golfinhos e baleias e sapos também usam como formas específicas de comunicação. Podemos também dizer aqui o fato de que quando nos apaixonamos, nos sentimos atraídos de tal maneira por um outro ser tal como nós que nosso coração soa com batimentos acelerados e isso pode ser percebido se houver um contato com a superfície vibrtatória, se o casal se deixar tocar-se poderão constatar um ao outro e elevar seus sentimentos. Na nossa relação sexual o som prevalece como componente do prazer mútuo entre as partes e respostas a essa comunicação. O feto cresce no útero ao som do coração da mãe, seu desenvolvimento tem laços com o ritmo da vida de sua genitora sustentadora.

Há um conceito em música chamado de "Paisagem sonora". O canadense Murray Schaffer em seus estudos, fala da percepção de sons de diversos ambientes. Por exemplo num passeio por um bosque você captará sons específicos a este determinado lugar, nesse caso desse ecossistema melhor dizendo. Podemos dizer que vivemos imersos em uma paisagem sonora que é própria do lugar em que vivemos e dessa forma nos traz o sentimento de pertencimento, ou seja, de fazer parte daquele ambiente. Segundo Raquel Lemos Castro (2007), em sua tese Ecologia Acústica, a acuidade auditiva era essencial à sobrevivência do ser humano nos primórdios de sua existência, muito mais do que qualquer outro sentido. O contato com o som e a musica é uma interação ser vivo-ambiente. É algo que traz o ambiente para dentro de nós e nos posiciona diante dele, nos orienta em relação a ele. Essa percepção vai além do órgão específico que nos permite ouvir.
Um caso notável disso é o do equipamento que permite os surdos sentirem a música através do contato do som a pele baseando-se no princípio da sinestesia, simulando no tato dos dedos as ondas sonoras que a audição humana capta no ar. Talvez por esse mesmo princípio Beethoven não se suicidou ao perder sua audição e compôs  algumas de suas maiores obras sem escutar, apenas sentindo as vibrações do piano. Por isso também ele poderia até mesmo dançar seguindo a vibração da sua música se acaso quisesse. Isso tudo graças ao simples fato da característica fundamental do som ser a vibração. Essa é a origem e essência de todo som e música. 
De forma que não poderia deixar de relacionar e mencionar o fato da ecologia ser vista hoje a partir da representação de uma teia, a chamada Teia da Vida, tal teia simboliza as diversas relações e como a vida está entrelaçada com as diversas relações intra e interespecíficas. Essa teia pode ser comparada a cordas de músicas, já que teias são de fato cordas entrelaçadas. Sabemos que Toda vibração (impacto) acaba afetando cada elo dessa teia-corda da vida. Quando uma espécie é afetada outras também são. Quando extermina-se uma espécie qualquer outras serão afetas e algumas também serão extintas. 

E se a organização ecológica da vida é a Teia, a qual também são cordas devemos citar a Teoria das Cordas, a teoria da física quântica que diz que a unidade fundamental da matéria são cordas que vibram e produzem elementos da física e dependendo da vibração pode construir ou modificar qualquer coisa).
  Em síntese o som é a origem da forma. Ora, a física quântica nos mostra que na realidade nosso corpo e a matéria são um conjunto de partículas vibrando. Pode dizer que a realidade da existência das pessoas e das coisas têm a música na sua unidade fundamental.

No filme "O Som do Coração", Evan ao vaguear pela cidade acaba sendo mais uma vez "guiado" pela música e encontra um menino tocando violão e através deste chega até o personagem "Mago" ("Wizard"). Evan obtém acesso a um violão e começa a tocar transformando-se assim numa criança prodígio e "Mago" encantado explica a poesia da física da musica:

"Você sabe o que é música?…
É um lembrete de Deus de que tem alguma coisa além de nós no universo… Ligação harmônica entre todos os seres vivos, em todo lugar… Até nas estrelas.
Sabe o que tem lá fora?"

"Uma série de tons maiores… É um arranjo da natureza governada pelas leis da
física, do universo inteiro… Som harmônico, energia pra estar de acordo…"

E é isso...dividimos esse fato em comum a tudo o que existe, desde as estrelas a uma simples flor, ou como diz uma música da banda carioca Forfun na sua canção chamada "Cigarras": ..."o universo todo numa flor"...
No final das contas somos um amontoado de átomos vibrando gerando música, formando relações sociais e nos relacionando com as demais espécies bem como o ambiente em que vivemos.


Dizem que Confúcio tem a seguinte frase: “Se quisermos saber em que civilização
vivemos devemos analizá-la pelo tipo de música que se escuta.”

Jorge Tonnera Jr.

Referências:
José Miguel Wisnik. O som e o sentido. Uma outra história das músicas. São
Paulo, Companhia das Letras, 1999, 285 pp.
Hélio Ziskind. O som e o sent. Uma trilha para O som e o sentido. CD integrante
do livro.
Rose Satiko Gitirana Hikiji

Ecologia Acústica, Raquel Castro. 2007

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